O Brasil vive um momento de inflexão em seu sistema de inteligência financeira. A combinação de transformações tecnológicas, o aumento expressivo de transações digitais e novas exigências regulatórias vem redesenhando as bases de prevenção à lavagem de dinheiro (PLD) no país. Especialistas apontam que a próxima etapa, já em curso, será marcada pela integração de dados entre bancos, fintechs, órgãos públicos e provedores de dados privados — e pela adoção da inteligência artificial para melhorar modelos, automatizar processos e ganhar eficiência nos processos de PLD.
Segundo dados mais recentes do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), foram produzidos 18.762 relatórios de inteligência financeira (RIFs) em 2024, um aumento de 335,9% em relação a 2015. O número de comunicações de operações suspeitas ultrapassou 7,5 milhões, revelando a dimensão da vigilância financeira e o desafio de processar, com eficiência, o enorme volume de informações que chegam diariamente ao sistema.
Embora o crescimento das comunicações indiquem uma maior sensibilidade das instituições para identificar movimentações atípicas, os especialistas alertam para o risco de sobrecarga operacional. Sem automação e interoperabilidade, o excesso de dados pode gerar falsos positivos e atrasar a identificação de ilícitos relevantes. O desafio não é apenas captar dados, mas assegurar a sua qualidade e transformá-los em inteligência útil e tempestiva.
A Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla), que reúne cerca de 90 órgãos públicos, também vem atualizando as suas diretrizes. Entre as prioridades para 2026 estão o fortalecimento dos controles sobre fraudes eletrônicas, a interoperabilidade de sistemas e o incentivo à adoção de tecnologias emergentes, como IA e machine learning. Essas medidas buscam dar resposta à complexidade das novas estruturas criminosas, que utilizam múltiplas camadas de transações e plataformas digitais para mascarar fluxos de recursos.
A aplicação de inteligência artificial desponta como o principal eixo de modernização. Por exemplo, modelos de machine learning permitem identificar redes ocultas e padrões atípicos de movimentação financeira com maior precisão. Experiências internacionais, inclusive de órgãos ligados ao GAFI (Grupo de Ação Financeira Internacional), mostram que algoritmos supervisionados podem reduzir significativamente o tempo de detecção de operações suspeitas. O desafio, no entanto, está em adaptar essas ferramentas ao arcabouço regulatório brasileiro e às estruturas de fintechs e instituições menores, preservando a privacidade e garantindo auditoria sobre os resultados.
Outro ponto de atenção é a interoperabilidade entre bases de dados públicas e privadas. Sistemas como o SIMBA, o INFOJUD e o Cadastro de Clientes do Sistema Financeiro (CCS) ainda operam de forma fragmentada. A ausência de padrões comuns limita o cruzamento automático de informações e dificulta a consolidação de relatórios integrados. A cooperação entre instituições financeiras e autoridades precisa ser contínua, técnica e segura. O futuro do compliance está na padronização de dados e na troca tempestiva e segura.
O Banco Central e o Coaf, que hoje atuam com autonomia técnica e operacional, vêm reforçando exigências de governança e de controle de riscos. Entre as frentes em discussão está a criação de diretrizes específicas para o uso ético de algoritmos no monitoramento de transações, alinhando o país às recomendações internacionais do Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI). O tema também integra a pauta da Enccla para 2026, que prevê a inclusão de métricas de eficiência e indicadores de interoperabilidade nos programas de prevenção.
Para as empresas que desenvolvem soluções tecnológicas de compliance, o cenário representa tanto um desafio quanto uma oportunidade. O setor privado tem papel essencial na construção dessa nova infraestrutura. A tendência é que, em 2026, o mercado passe a adotar mais plataformas integradas de monitoramento, com módulos de IA, dashboards preditivos e com capacidade de adaptação imediata às mudanças normativas.
A consolidação dessa nova etapa dependerá da coordenação entre tecnologia, governança e cooperação institucional. O êxito não será medido apenas pela quantidade de relatórios produzidos, mas pela sua qualidade, a efetividade das análises e pela agilidade na resposta a sinais de irregularidade.
Em 2026, o sistema financeiro brasileiro deve alcançar um novo patamar de maturidade, no qual a informação, tecnologia e regulação convergem para formar uma rede de inteligência financeira mais precisa, eficiente e transparente — base indispensável para a integridade do mercado e para a confiança dos investidores.
Fonte: Alexander Fürst - fundador da Cerberus, empresa especializada em soluções de compliance e monitoramento.
