A crise de confiança no mercado de capitais




O mercado de capitais brasileiro atravessa um período de incerteza e apreensão. A eficácia da regulação, vital para o seu bom funcionamento e desenvolvimento, está em xeque diante de uma grave crise de liderança na Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

O cenário torna-se preocupante quando consideramos a repercussão de casos recentes como os de Braskem, Ambipar e a Operação Carbono Oculto, envolvendo desde perdas bilionárias de investidores, a denúncias de infiltração de organizações criminosas no mercado, que abalam profundamente a confiança no mercado. Exige-se uma resposta regulatória firme e transparente.

A CVM, guardiã da integridade do mercado de valores mobiliários, enfrenta uma situação de vácuo de poder. A renúncia do Presidente João Pedro Nascimento em 18 de julho de 2025, após três anos à frente da Autarquia, deixou a principal cadeira vaga. Desde então, o diretor mais antigo, Otto Lobo, assumiu interinamente a presidência. Todavia, pelo menos metade dos cargos de diretoria está sem ocupação efetiva. Os diretores Marina Palma Copola de Carvalho (mandato até 2028) e Daniel Walter Maeda Bernardo (mandato até 2024) compõem atualmente 50% da diretoria.

Essa configuração, formada por presidência interina e metade das diretorias vagas, compromete a espinha dorsal da governança da CVM. A Lei nº 13.848/2019, que estabelece o Marco Geral das Agências Reguladoras, exige que a tomada de decisões seja colegiada (Art. 7º) para assegurar a pluralidade e a solidez regulatória. A ausência de um corpo diretivo completo não apenas ameaça a capacidade de liderança, mas também pode levar à morosidade decisória, deixando questões estratégicas e normativas urgentes sem definição, prejudicando a agilidade que o mercado demanda.

O enfraquecimento da composição diretiva da CVM pode prejudicar a autonomia e independência da Autarquia, minando sua autoridade na perspectiva do mercado e de outras esferas de poder. A falta de plenitude no colegiado pode resultar em inconsistência regulatória, com decisões menos previsíveis e consistentes, dificultando a construção de uma jurisprudência estável, fundamental para a segurança jurídica e a confiança dos agentes.

A crise de liderança soma-se às críticas realizada ainda em 2020 pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Em seu Acórdão nº 3525/2020, o TCU já havia apontado a existência de potenciais conflitos de interesse na nomeação de diretores da CVM, bem como a falta de transparência e previsibilidade nas decisões. As críticas se estendiam à forma ad hoc com que as deliberações eram tomadas em casos analisados, sem a devida referência a precedentes consolidados, desrespeitando o Art. 30 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).

A recomendação do TCU para a indicação de servidores efetivos para a diretoria da CVM, visando equilíbrio e impessoalidade, ganha ainda mais urgência no atual contexto de vacância. A credibilidade da CVM depende intrinsecamente de sua capacidade de decisão, de agir com transparência, previsibilidade e independência, qualidades que são severamente minadas por um cenário de instabilidade em sua liderança.

Os recentes escândalos de mercado reforçam a necessidade premente de uma regulação robusta e de uma liderança forte da CVM. Casos como a recuperação judicial da Ambipar, deferida pela juíza Caroline Fonseca, da 3ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro, em 30 de outubro de 2025, confirmam a existência de dívidas da companhia no patamar de impressionantes R$ 10,48 bilhões e ratificam a suspensão da exigibilidade das obrigações financeiras da companhia, consolidando um cenário de prejuízo para os investidores. Casos como este abalam a confiança do cidadão comum e a credibilidade de todo o sistema.

Nesses cenários, a CVM precisa mostrar força, unidade e estratégia, focando em resultados. É fundamental promover reparações rápidas para mitigar danos e restaurar a confiança, além de atuar proativamente, chamando todos os potenciais responsáveis ao diálogo para compreender o problema sob diversas óticas e estudar estratégias de prevenção de problemas futuros.

É neste ponto que a regulação responsiva emerge como um farol. Propõe um sistema de regulação estatal com atuação flexível e orientada a resultados, capaz de equilibrar sanções com incentivos à conformidade. Todavia, a regulação responsiva depende fundamentalmente de um regulador confiável, transparente e com governança estruturada. O modelo das "pirâmides regulatórias" busca resolver conflitos pelo diálogo antes de escalar para medidas coercitivas. Nesse ponto, a ausência de uma liderança estável e completa na CVM impede a construção dessa confiança mútua e da governança robusta que são seus pilares.

Na perspectiva da regulação responsiva, é essencial a cooperação desde a fase prévia. Não há possibilidade de cumprir o objetivo da regulação, de forma a solucionar a maior parte dos conflitos rapidamente, sem cooperação, mesmo que complementada pelo processo administrativo sancionador e pelo recurso da sanção. A discricionariedade inerente à regulação responsiva exige um processo decisório claro, transparente e motivado para não gerar arbitrariedade. Sem uma liderança forte e plena, a CVM corre o risco de se afastar do propósito de previsibilidade do sistema.

É imperativo que o poder público atue com celeridade na nomeação de um presidente e de um corpo de diretores qualificados e independentes para a CVM, na forma da legislação. O futuro do mercado de valores mobiliários brasileiro, a proteção dos investidores e a credibilidade do sistema regulatório dependem da pronta superação desta crise de liderança.



Fonte: Lucía Ferrés - Doutora em Direito do Estado pela PUC/SP possui Mestrado em Direito pela PUC-SP, e é formada em Ciências Sociais pela UNICAMP. Atua como advogada em diferentes segmentos do mercado de valores mobiliários.