Direito das sucessões precisa dialogar com a realidade contemporânea




Nem toda proposta de modernização legislativa deve ser acolhida com entusiasmo imediato, muito menos rejeitada por tradição. Algumas ideias, embora desafiadoras à primeira vista, carregam grande potencial de aprimoramento institucional, sobretudo quando orientadas pela busca de autonomia privada atrelada a segurança jurídica. 

É sob essa ótica que devemos compreender o Projeto de Lei nº 4/2025, que propõe uma relevante atualização no artigo 426 do Código Civil ao sugerir hipóteses específicas de flexibilização na vedação aos chamados pactos sucessórios, os “pacta corvina”.

A regra geral permanece inalterada, mantendo-se a vedação, como princípio, à celebração de contratos que disponham sobre herança de pessoa viva, em razão de fundamentos amplamente justificados. Todavia, o projeto reconhece que determinados contextos familiares e patrimoniais podem justificar a admissão excepcional de acordos específicos, desde que existam respaldos jurídicos que os justifiquem.

Assim, dentre as inovações previstas, destaca-se a permissão para que ascendentes e seus herdeiros diretos possam formalizar acordos sobre aspectos sucessórios sensíveis, como a colação de bens anteriormente doados, a definição sobre doações consideradas inoficiosas e a organização de participações societárias familiares.

Notoriamente, essa conduta permissiva do legislador buscou favorecer o planejamento patrimonial em vida e a solução consensual de questões que, em muitos casos, seriam postergadas para o momento do inventário, frequentemente um período delicado, marcado por inseguranças jurídicas e tensões emocionais.

Outro ponto de destaque da proposta é a possibilidade de cônjuges e companheiros renunciarem, por escritura pública, ao seu direito sucessório, seja em pacto antenupcial ou em documento posterior ao casamento ou à união estável. Essa renúncia poderá, inclusive, ser condicionada a eventos futuros, como a existência de filhos comuns.

Casos essas flexibilizações de fato ocorram, representarão uma significativa alteração na lógica tradicional da sucessão legítima, especialmente em estruturas patrimoniais robustas ou em arranjos conjugais com autonomia financeira claramente estabelecida entre as partes.

O projeto, entretanto, não ignora a necessidade de estabelecer mecanismos de proteção às partes envolvidas. Um exemplo disso é a previsão de que a renúncia não poderá afastar o direito real de habitação do cônjuge sobrevivente, salvo se houver disposição expressa nesse sentido. Além disso, a renúncia será considerada ineficaz caso o renunciante seja o único herdeiro previsto.

Em que pese ainda esteja em fase de discussão legislativa, a proposta revela uma tendência importante: o reconhecimento de que o Direito das Sucessões precisa dialogar com a realidade contemporânea. Famílias empresárias, estruturas patrimoniais sofisticadas e relações conjugais modernas frequentemente demandam soluções mais flexíveis, que favoreçam a previsibilidade, o consenso e a racionalização de processos sucessórios. A reforma do Código Civil, se aprovada, poderá oferecer instrumentos jurídicos valiosos para esse fim, desde que empregados com responsabilidade, técnica e sensibilidade.

Mais do que uma ruptura, o que se propõe é um avanço gradual, cuidadosamente delimitado, que não abandona os princípios que historicamente nortearam o Direito Sucessório, mas sim os ajusta às novas exigências sociais e econômicas. 

Com a devida atenção à forma, à informação e à liberdade de manifestação da vontade das partes, essas mudanças têm o potencial de contribuir para uma sucessão mais planejada, menos litigiosa e, acima de tudo, mais alinhada à realidade das famílias brasileiras contemporâneas.


Fonte: Mariana Andrião - advogada especialista em Direito Empresarial, cursa MBA em Agronegócio, é consultora de Family Office na Evoinc.