Guerra comercial não é sobre tarifas alfandegarias




Ao criticar a confiança excessiva dos economistas nos modelos matemáticos, amplamente utilizados para explicar os fenômenos econômicos, o economista britânico John Maynard Keynes argumentava que “é melhor estar aproximadamente certo do que precisamente errado”. Com efeito, a julgar pelas discussões estabelecidas em torno do entendimento da guerra comercial deflagrada pelos EUA contra a China e, de tabela, seus impactos sobre os mercados globais, Keynes facilmente concluiria que estamos precisamente errados.

Inusitadamente, nesta guerra, a imposição de tarifas constitui a dimensão mais irrelevante, para não dizer superficial, deste conflito. Isto ocorre por dois motivos: primeiro, porque tarifas de importação—sobretudo quando exageradas não são sustentáveis a médio e longo prazo; em segundo lugar, porque acabam destruindo justamente aquilo que buscam promover: os benefícios do comércio. Logo, essa guerra não se trata apenas de comercio, mas de uma disputa hegemônica.

Na realidade, a deflagração da guerra comercial por parte dos EUA constitui o desfecho de dois processos distintos e paralelos, gestados ainda na década de 1980 tanto pelos Estados Unidos quanto pela China, e que agora alcançam sua fase de maturidade. Assim como a acomodação de placas tectônicas desencadeiam terremotos, a disputa pela hegemonia promove, no curto prazo, incertezas, volatilidade exagerada, especulação e estresse no mercado financeiro.

Com a quebra do sistema de Breton Woods na segunda metade da década de 1970, o padrão ouro foi abandonado e o dólar americano assume o papel de moeda global. Isso forçou os demais países a entrarem numa intensa competição por dólares, os quais poderiam ser obtidos, em grande medida, por meio das exportações. Por sua vez, o consumo americano tornava-se o canal necessário para que esses dólares circulassem e fossem redistribuídos globalmente — configurando uma nova lógica de dependência monetária e comercial centrada nos Estados Unidos.

Com isso, os Estados Unidos passaram a se especializar em serviços financeiros, desenvolvimento de tecnologia e aumento do consumo interno. Este arcabouço financeiro permite aos Estados Unidos, imprimir moeda (dólares) para restaurar seus desequilíbrios externos e exportar inflação para o resto do mundo, a este hegemônico mecanismo, o então presidente francês Charles De Gaulle se referia como “privilégio exorbitante”.

Por outro lado, a China, sob o comando de Xiaoping ainda na década de 1980, promoveu a reinserção internacional priorizando a expansão da capacidade industrial, produção em massa e competitividade dos custos, a partir do uso da taxa de câmbio artificialmente desvalorizada. Desse modo, o alicerce do poder global da China repousa na sua capacidade produtiva, com o lucro empresarial subordinado aos objetivos estratégicos nacionais, o que permite aos chineses utilizá-lo como meio para sustentar a expansão da capacidade produtiva via expansão do mercado interno e externo, inovação tecnológica e estabilidade social, desnecessário apontar que esta estratégia recuperou o protagonismo chines, perdido com o advento da revolução industrial.

Nesse contexto, os EUA, e muitos analistas, já entenderam que a financeirização não é mais condição suficiente para assegurar a hegemonia, pois enquanto no modelo americano a produção ocorre desde que seja lucrativa, no modelo chinês, o lucro é aceitável desde que promova a expansão produtiva. Nesse sentido, o inevitável ponto de disputa ocorre justamente no âmbito da produção—e esta, por sua vez, decorre da capacidade que cada modelo tecnológico é capaz de desenvolver e escalar.

Por isso, espetáculos pirotécnicos à parte, no médio e longo prazo, os parceiros comerciais relevantes serão determinados não mais com base em afinidade ideológica, proximidade geográfica ou acordos tarifários e sim a partir do uso e compartilhamento de plataforma produtivas e afinidades tecnológicas.

                                            

Fonte: César Piorski - doutor em Economia e estrategista financeiro. Atua na estruturação de negócios e na gestão patrimonial, com ênfase no desenvolvimento estratégico de novas empresas.