Quais mortos merecem nosso pranto?




No Dia dos Mortos, recordamos os nossos entes queridos que se foram. Por vezes, depositamos flores em suas lápides com datas já amarrotadas pelo tempo. Ou simplesmente comentamos à mesa uma passagem memorável, alegre ou edificante e, assim, esticamos por alguns minutos a existência desse morto entre nós. 

Quando a morte é recente e a ausência ainda não é um fato assimilado ou mesmo aceito em face de circunstâncias que ocorreu - como um acidente ou um mal súbito ou, pior, uma violência - o dia se torna um receptáculo de lamentos e acusações ao mundo e ao além-mundo, tendo o suposto Protetor como alvo predileto; a incompreensão pela perda sendo transferida para quem deveria evitá-la ou pelo menos justificá-la.

No entanto, quando saímos de nossa bolha e olhamos sob a perspectiva da História, há muito mais mortes que comemoramos do que lamentamos. A morte é uma "solução" para os inimigos, para as ameaças, para os que são diferentes de nós, daqueles que, real ou imaginariamente, põem em risco nossa existência e nosso modo de vida. 

Como ensina Freud, em um texto escrito durante a primeira grande guerra, “o que não é cobiçado por nenhuma alma humana não precisa ser proibido (…) É justamente a ênfase da proibição: não matarás que nos dá a certeza de que descendemos de uma série infinitamente longa de gerações de assassinos, para os quais o prazer de matar, tal como talvez para nós mesmos ainda, estava no sangue”.

No nosso cotidiano, assumimos esse paradoxo, muitas vezes, ao mesmo tempo: enquanto um pensamento entristece com a lembrança do ente querido que se foi, outro vibra com a notícia de que a polícia exterminou mais uma “gangue de bandidos”, ou de que o país iniciou a contraofensiva contra os terroristas responsáveis por um massacre inacreditável. Nosso olhar embaça e se ilumina em torno do mesmo assunto. Tudo depende de qual morte estamos falando.

Quais mortos merecem nosso pranto? Há sempre uma explicação plausível para que a morte seja fonte de dor ou de júbilo. A conclusão é um tanto embaraçosa: não é a morte em si que é chorada ou comemorada, mas a forma como essa morte afeta o nosso espírito narcísico que, como mais uma vez lembra o Doutor Freud, acha que não vai morrer nunca e detesta quando o desautorizam com seus desaparecimentos inesperados.

Nosso tempo de informação contínua e sem descanso, lembra-nos de todos os mortos a todo instante. Durante a pandemia, os números nos eram apresentados diariamente, em um placar seguido de quadros explicativos do aumento ou diminuição das incidências da última semana. Ficávamos informados sobre as mortes dos outros e esse espectro nos acompanhava em todos os lugares, lembrando-nos de que poderíamos ser os próximos da lista. 

Muitos espíritos mais fracos, inclusive, caíram em uma negação explícita e desafiaram as mais sensatas medidas de segurança, de distanciamento e de vacinação. Muitos morreram porque recusaram a ideia de que poderiam morrer, já que, afinal, a morte é um assunto dos outros.

Agora, vivemos o desfile diário das mortes pela ação terrorista na Palestina e pela contra ofensiva insana que tornou toda uma população refém de um desejo de ira e vingança muito mais do que de Justiça. E, mais uma vez, temos a oportunidade de escolher quais mortes vamos lamentar e pelas quais vamos torcer, como em uma disputa de pênaltis no fim de um campeonato. 

Curioso é que, nessas disputas, os dois lados invocam o Protetor, como se Ele também tivesse um lado e como se Ele também lamuriasse ou regozijasse pelos mortos “certos" ou “errados”.

Quais mortos merecem nosso pranto? Eu fico com a resposta de Hemingway. Nesses tempos de realidades tão indecorosas, a ficção é, de longe, o lugar onde podemos encontrar o que resta da nossa humanidade combalida. E plantá-la novamente, para além do vale das sombras.


Fonte: Daniel Medeiros - doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.