Investimentos, empresas e direitos humanos: a irremediável conexão


O governo brasileiro se viu na quinta-feira (9/7) às voltas com a tentativa de fornecer explicações aceitáveis a investidores estrangeiros em videoconferência na qual estavam presentes o Vice-presidente da República e Ministros de Estado do Meio-Ambiente, das Relações Exteriores, da Casa Civil, da Agricultura, da Comunicação, além do atual Presidente do Banco Central.

Quais explicações? Sobre desmatamentos da Amazônia e direitos dos povos indígenas, atualmente sobre franca ofensiva do governo atual, apesar das justificativas fornecidas pelo Vice-Presidente que comanda o Conselho da Amazônia. Tanto o é que apesar das explicações apresentadas pelo governo brasileiro aos investidores de que o desmonte das estruturas administrativas protetivas do meio-ambiente se origina em gestões anteriores, dentre outras, fato é que ainda esta semana o Tribunal de Contas da União recebeu pedido do Ministério Público para que investigue o governo por omissão na área ambiental; o Presidente da República vetou proposições legislativas especificamente voltadas à proteção dos povos indígenas em face da pandemia da COVID-19, como acesso a água potável e leitos de UTIs, o que levou a Associação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e alguns Partidos Políticos a acionarem o STF, que por meio de decisão cautelar proferida pelo Ministro Luís Roberto Barroso determinou ao Poder Executivo, nos autos da ADPF nº 709/DF, que efetive medidas necessárias para proteção dos referidos povos originários, apenas para citarmos alguns exemplos.

A apontada videoconferência confirma uma tendência verificada nas últimas décadas ao longo das quais a preocupação com o meio-ambiente evoluiu para autênticas "cláusulas verdes" e que condicionam a aceitação de empresas e exportadores brasileiros como ator no comércio internacional à preservação ambiental e respeito às culturas ancestrais e tradicionais, dentre outras cláusulas relativas aos Direitos Humanos. Assim, desmatamentos, invasões de terras indígenas, trabalho escravo, trabalho infantil dentre outras situações de violações aos direitos humanos fundamentais reconhecidos por normas internacionais, regionais e nacionais, compõem o mosaico de critérios seletivos impostos ao país pela comunidade internacionais e os respectivos investidores.

A situação expõe de modo didático qual o papel contemporâneo do mundo corporativo na tutela dos direitos e garantias da dignidade do ser humano. O movimento transnacional do poder econômico superou a capacidade de vários Estados no que tange ao cumprimento de suas competências e proteção da cidadania. Se, por um lado, porém, críticas existem em relação ao enfraquecimento do Estado e diante da captura de instâncias oficiais e administrativas pelo Poder Econômico (Capture Theory), de outro desenvolveu-se a percepção de que os players corporativos podem se tornar fortes aliados no combate à discriminação, ao desmatamento das florestas e ao etnocídio dos povos indígenas, por exemplo, a partir de uma tomada de consciência que passou a ser vislumbrada por meio do conceito de Responsabilidade Social Corporativa (RSC) ou Responsabilidade Social Empresarial (RSE) fruto das dinâmicas de globalização corporativa (Ruggie) e que traduzem a ideia de um complexo de princípios, diretrizes, valores e práticas compartilhadas que buscam ressignificar o papel dos negócios privados sobre o bem estar mais amplo das pessoas e da sociedade.

Sob tal visão, tornou-se necessária a reformulação das dinâmicas produtivas e a revisão dos processos em toda a cadeia de fornecimento de modo a identificar eventuais falhas e violações, daí porque ressaltamos a importância das denominadas human rights due diligences. Diretrizes globais passaram a ser idealizadas e propostas, destacando-se o Guia de Princípios Corporativos das Nações Unidas para Direitos Humanos (idealizado pelo Comissário Especial John Ruggie) e adotado pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU em 2011 como princípios não vinculantes. Devem ser destacados ainda o Pacto Global; o selo ISO 26000; as Diretrizes da OCDE para Empresas Multinacionais; e, os Princípios Orientadores para Empresas e Direitos Humanos.

A partir deste cenário de legitimidade corporativa perante as sociedades e Estados, cujas raízes podem ser identificadas já há algumas décadas, não é difícil vislumbrar os fundamentos que guiam os investidores estrangeiros e as ações das empresas quando visam imprimir em suas operações transparência, ética e maior compromisso com suas responsabilidades diante das sociedades em cujo seio, atuam.

A videoconferência realizada entre o governo brasileiro e investidores como a Legal and General Investment Management, do Reino Unido; Nordea Asset Management, Investment Management, AP2 Second Swedish e National Pension Fund, todas da Suécia; Storebrand Asset Management e KLP, ambas da Noruega; Robeco, dos Países Baixos; e, Sumitomo Mitsui Trust Asset Management, do Japão, implica numa verdade inafastável e irremediável: a de que diretrizes consentâneas com as políticas públicas de direitos humanos; a observância às estruturas de governança, aos parâmetros de compliance em direitos humanos e de respeito à cidadania sem admissão a qualquer espécie de discriminações, incluído evidentemente o combate ao racismo e às desigualdades, se antes constituíam normas programáticas endereçadas aos Estados e seus governos, passam atualmente a compor pauta imposta às corporações transnacionais que desejarem desenvolver suas operações com o mínimo de competitividade. Para além da observância às normas vigentes em qualquer sociedade, o papel das empresas envolve a conscientização e o estabelecimento de uma nova cultura que transpassa o mero respeito à lei: impõe o efetivo comprometimento com os anseios sociais por uma cidadania plena e participativa. E, certamente, pautará e condicionará os planejamentos estratégicos também das empresas brasileiras.

Assim, também a ação do Facebook no plano internacional e que bloqueou em diversos países contas de clientes que propagavam o discurso de ódio e conteúdos racistas projetam esta realidade inadiável. Uma investigação encetada internamente pela empresa, sem qualquer imposição por qualquer estrutura oficial levou a tal resultado. Referida ação foi impulsionada, na verdade, após boicote ao Facebook levado a cabo por diversos anunciantes, como Adidas, Coca-Cola, Heineken e Starbucks dentre outros. Ainda que se possa questionar a demora da empresa na adoção da medida referida após anos de propagação do hate speech em suas plataformas, resta patente que o elemento econômico se torna, a partir de agora, importante aliado na efetivação dos direitos humanos, por vezes muito mais eficaz que as ações sancionatórias pelas autoridades públicas e demais instâncias oficiais.

Esperemos que tal movimento atinja setores que tradicionalmente simbolizam graves violações da dignidade humana admitida, tolerada e até mesmo incentivada por certos atores públicos, setores sociais e governantes autoritários, como se verifica em relação ao sistema prisional, à situação das populações LGBTQIA+, aos povos indígenas e populações negras nas periferias, apenas para citarmos alguns.

Como afirmou Norberto Bobbio, (…) não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados (…).

Nesse sentido, o papel das empresas em fazer respeitar, proteger e garantir às vítimas de violações acesso real ao ressarcimento possível por violações de seus direitos humanos, sejam impostos diretamente pelas empresas, seja pelos Estados, significa profunda e eficaz mudança de paradigma para consolidação de sociedades mais humanas e equitativas.


Fonte: Flávio de Leão Bastos Pereira - professor de Direitos Humanos e Direito Constitucional na Universidade Presbiteriana Mackenzie e coordenador do Núcleo Temático de Direitos Humanos da Escola Superior da Advocacia da OAB/SP.