Metas ambientais assumidas na ONU pelo Brasil impõem discussão jurídica


Mais dois importantes passos foram dados em direção à economia brasileira de baixo carbono. A COP24, realizada em Katowice (Polônia) e que se encerrou dia 15 de dezembro de 2018 aprovou o Livro de Regras do Acordo de Paris, firmado no âmbito da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática e promulgado em 5 de junho de 2017 no Brasil, por meio da publicação do Decreto Federal nº 9073/2017.

No estágio atual, cerca de 160 países (incluindo o Brasil) já apresentaram suas metas de redução de emissões para limitar o aquecimento global e, por sua vez, os demais signatários deverão fazê-lo até 2020. Essas metas devem ser atualizadas a cada cinco anos e serão verificadas a partir de 2024, segundo a metodologia estabelecida no Livro de Regras aprovado. A cada dois anos, os países apresentarão um relatório detalhando de suas respectivas ações e, a cada cinco anos, farão um balanço mundial de seus esforços coletivos para alcançar o objetivo de limitar a temperatura global em até 1,5ºC.

A aprovação do Livro de Regras é uma sinalização clara de que a edição da Política Nacional dos Biocombustíveis (RenovaBio – Lei Federal nº 13.576/2017), aprovada há quase um ano, está em sintonia com o esforço da comunidade internacional de criar regras claras que servirão de base para uma nova economia de baixo carbono, mesmo tendo sido postergada para o ano que vem a decisão sobre como funcionará um sistema de comércio internacional de direitos e compensações de emissões de carbono.

É que as regras já em vigor do RenovaBio criaram os instrumentos jurídicos necessários para o cumprimento das metas assumidas pelo Brasil no Acordo de Paris, que consistem em diminuir as suas emissões de carbono em 37% até 2025, e em 43% até 2030. Para alcançar esses objetivos, ao menos em parte, a estratégia brasileira é aumentar a participação dos biocombustíveis em sua matriz energética.

Entre os instrumentos jurídicos criados na RenovaBio está o estabelecimento de metas para os distribuidores de combustíveis, quepodem ser cumpridas, na prática, por meio de contratos de longo prazo de aquisição de biocombustíveis (além dos mínimos compulsórios já existentes em outros diplomas normativos, como no caso da adição de etanol à gasolina e do biodiesel ao óleo diesel), ou por meio da aquisição de títulos denominados CBIOS (créditos de descarbonização), que podem ser emitidos por empreendedores (produtores ou importadores) de biocombustíveis devidamente certificados. A propósito, a definição da meta de cada distribuidor e o método de certificação foram objeto de recente regulamentação.

O Decreto Federal nº 9308, de 15 de março de 2018, definiu que o Conselho Nacional de Política Energética – CNPE deliberará a respeito das metas, a partir das recomendações do Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima – CIM e do Comitê RenovaBio. Com a Resolução nº 578/2018 da ANP, editada dia 23 de novembro de 2018, os empreendedores de biocombustíveis passaram a ter regras claras quanto à certificação e, consequentemente, ao direito de emissão dos CBIOS.

Em síntese, a certificação emitirá uma Nota de Eficiência Energético-Ambiental do empreendimento, que representa a diferença entre a intensidade de carbono do combustível fóssil e do biocombustível, feita com base na avaliação do ciclo de vida do processo produtivo do biocombustível. Enfim, podem se beneficiar da emissão de CBIOS os empreendedores que são produtores ou importadores de biodiesel, biometano, combustíveis alternativos sintetizados por ácidos graxos e ésteres hidroprocessados (HEFA), e etanol (de primeira e segunda geração, de milho ou de cana de açúcar).

Mas os esforços brasileiros para alcançar as metas assumidas perante o Acordo de Paris e a COP24 não se limitam à substituição dos combustíveis fósseis líquidos, o que leva a algumas discussões jurídicas relevantes. Por exemplo, a definição de distribuidor de combustíveis (art. 5º, VI) presente na lei da RenovaBio é ampla e não exclui a priori nenhum distribuidor.

Existe algum debate nas associações representativas da iniciativa privada quanto à restrição dessa definição aos distribuidores de combustíveis líquidos, definidos na Resolução nº 58/2014 da ANP. Contudo, o texto legal ora em vigor não parece permitir essa interpretação e, portanto, aqueles distribuidores de outros combustíveis que se submetem à fiscalização da ANP, como os de GNC (gás natural comprimido, cuja distribuição é regulada pela Resolução nº 41/2007 da ANP) e GLP (gás liquefeito de petróleo, ou gás de cozinha, cuja distribuição é regulada pela Resolução nº 51/2016 da ANP) aparentam estar submetidos à mesma regra, em que pese a sua participação muito menor na matriz energética brasileira, quando comparada à dos combustíveis líquidos.

Quanto aos distribuidores de gás natural canalizado (isto é, por meio de gasodutos), cujo serviço é regulado no nível estadual por força do art. 25, § 3º, da Constituição de 1988, estes não parecem ter, com o devido respeito às opiniões em sentido contrário, obrigações de cumprir metas segundo a lógica da RenovaBio, na medida em que essa matéria só poderia ser regulada no âmbito estadual. Ou seja, seria inconstitucional interpretar a RenovaBio de modo a incluir esses distribuidores de gás canalizado na definição de distribuidor de combustíveis e, consequentemente, impor as respectivas obrigações. 

Entretanto, nada impede que os estados legislem definindo obrigações e metas a esses distribuidores de gás canalizado, de forma semelhante à da RenovaBio, inclusive com o objetivo de fazer com que o Brasil cumpra a sua meta nacional de reduções, assumida com o Acordo de Paris, mantendo-se evidentemente o equilíbrio econômico-financeiro das respectivas concessões.

Enfim, apesar de não previstas expressamente nas normas da RenovaBio, essas questões narradas acima já despertam alguma polêmicaentre os agentes econômicos que, de uma forma ou de outra, participam do mercado de biocombustíveis e, em especial, daqueles que operam com biometano. Mas a definição de uma resposta precisa para todas essas questões é essencial para trazer segurança jurídica para essas outras operações de distribuidores e produtores de biocombustíveis.

O que não se pode permitir, no entanto, é que haja um retrocesso agora que há o Livro de Regras do Acordo de Paris e a regulamentação do RenovaBio em vigor, pois são nítidos avanços na economia brasileira de baixo carbono. Oxalá os rumores de uma mudança drástica de direção sejam passageiros e que as regras editadas até o momento sejam mantidas, a fim de que possam alavancar novos investimentos na substituição de combustíveis fósseis por biocombustíveis e, assim, o Brasil siga firme no caminho do cumprimento de suas metas de redução de emissões.



Fonte: Rafael Filippin é advogado especialista na área ambiental e sócio-coordenador do Departamento de Direito Público da Andersen Ballão Advocacia.